Mais de 15 anos após falência, Varig está no centro de uma batalha bilionária

A Varig teve sua falência decretada em 20 de agosto de 2010, marcando o fim de quase oito décadas de história de uma das maiores companhias aéreas brasileiras. Porém, mesmo 15 anos depois, o patrimônio que restou ainda é motivo de uma disputa bilionária envolvendo a União, o fundo de pensão Aerus e um fundo de investimento vinculado ao BTG Pactual.

O valor em questão é um saldo aproximado de R$ 3 bilhões, remanescente de um precatório de R$ 4,7 bilhões que a União pagou à massa falida da Varig em julho deste ano. Para contextualizar, precatório é uma ordem de pagamento judicial emitida quando o Estado perde uma ação de forma definitiva e sem possibilidade de recurso.

Esse conflito ganhou intensidade em agosto, quando o Aerus, responsável pelas aposentadorias dos antigos funcionários, e um fundo sob gestão do BTG recorreram à Justiça para liberar esses recursos. A União, entretanto, defende que o montante permaneça retido até a resolução de outras disputas judiciais referentes à falência da companhia.

Recentemente, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) autorizou que os cerca de R$ 3 bilhões depositados para a massa falida da Varig fossem repartidos entre os credores que possuem garantia real — ou seja, que detêm créditos respaldados por bens ou garantias oficiais da empresa. Apesar da decisão favorável, o dinheiro ainda não foi liberado.

Atualmente, os dois maiores credores nesta categoria são o Aerus e o FIDC Precatórios Brasil, fundo administrado pelo BTG Pactual e representado pela securitizadora Travessia. O Aerus detém o maior crédito, originalmente em torno de R$ 2,6 bilhões, valor que, com correções, pode ultrapassar R$ 5 bilhões. Já o fundo vinculado ao BTG possui um crédito reconhecido de cerca de R$ 141 milhões, adquirido de uma subsidiária do Banco do Brasil.

Por sua vez, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) se opôs à decisão do TJ-RJ e entrou com recurso para solicitar que o montante continue bloqueado até o julgamento de uma ação que discute débitos tributários da antiga Varig. A PGFN argumenta que o valor ainda não integra definitivamente o patrimônio da massa falida e que o acordo firmado em 2024, que originou o pagamento do precatório, condiciona a liberação do saldo remanescente à análise da compensação tributária, que está sob apreciação na Justiça Federal em Brasília.

A União busca utilizar esses recursos para abater dívidas tributárias antigas, antes de disponibilizar o dinheiro aos credores da massa falida. Para a Fazenda, liberar os valores antes da resolução desta questão infringiria o acordo homologado, causando prejuízos aos cofres públicos.

Os representantes do Aerus e da Travessia contestam essa interpretação. Para eles, os recursos remanescentes — os R$ 3 bilhões — não estão vinculados ao acordo firmado com a massa falida, especialmente porque nem o Aerus nem o fundo participaram dessa negociação. O Aerus, especificamente, reivindica a liberação para pagamento de direitos previdenciários reconhecidos há mais de dez anos, sem ligação com a disputa tributária da qual não faz parte.

A Travessia, que conta com a defesa de um dos escritórios mais renomados do país, o de Sérgio Bermudes, acusa a União de tentar prolongar indefinidamente a disputa, criando uma espécie de “moratória judicial” sobre valores que, segundo eles, deveriam ter sido distribuídos já conforme a ordem de pagamento estabelecida na Lei de Falências. O caso ainda tramita na Justiça.

Origem da disputa

Essa intensa disputa financeira refere-se ao desdobramento do processo de falência da Varig, iniciado há quase duas décadas. Em junho de 2005, a companhia entrou com o primeiro pedido de recuperação judicial de grande porte sob a nova Lei de Falências, que havia sido sancionada um ano antes. Na ocasião, a empresa tinha uma dívida superior a R$ 7 bilhões, com mais de 10 mil credores envolvendo bancos, fornecedores, fundos de pensão e ex-funcionários.

O plano judicial aprovado determinou a divisão da empresa em duas partes: a “Varig Operacional”, que incluía rotas, aeronaves e empregados, e a “Varig Velha”, destinada a concentrar os passivos e ações judiciais. A parte operacional foi vendida em 2006 à VarigLog, controlada por investidores brasileiros e pela gestora americana MatlinPatterson, por cerca de US$ 24 milhões. Posteriormente, em 2007, essa operação foi transferida para a Gol Linhas Aéreas, que passou a administrar as rotas e a marca Varig.

Já a “Varig Velha” teve sua falência decretada em 2010, sem gerar receita e cercada por uma enorme dívida. Entre os principais débitos estavam contribuições previdenciárias dos funcionários e aposentados vinculados ao fundo Aerus, além de obrigações com a Receita Federal e bancos públicos que haviam financiado a empresa.

O fundo Aerus, que cuidava das aposentadorias, entrou em colapso após o colapso da Varig e foi submetido a liquidação extrajudicial pela Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc). A Justiça reconheceu, em ação civil pública iniciada em 2004, que a fiscalização federal sobre o Aerus falhou, permitindo prejuízos crescentes sem adoção de medidas corretivas.

Como resultado, a União foi condenada a compensar os participantes do fundo, assumindo parte das responsabilidades previdenciárias da Varig. Até hoje, a União já aportou cerca de R$ 7,73 bilhões no Aerus para garantir pagamentos de aposentadorias e pensões, processo que ainda aguarda decisão final.

O precatório e o acordo

Simultaneamente, ocorre uma das ações judiciais mais longas no campo econômico brasileiro: a Varig buscava indenização da União por perdas financeiras provocadas pela política tarifária do Plano Cruzado, período entre 1985 e 1992 em que o governo federal fixou preços das passagens aéreas, impedindo reajustes que refletissem a inflação, o que teria causado prejuízos bilionários à companhia.

Após mais de três décadas de litígio, em 2024, foi firmado um acordo judicial mediado pela Advocacia-Geral da União (AGU). Na ocasião, os cálculos da massa falida estimavam que a dívida da União somava mais de R$ 10 bilhões, incluindo juros e corrigidos monetários acumulados desde a década de 1980.

Antes da celebração do acordo, a massa falida negociava com o BTG Pactual a venda desse crédito judicial por cerca de R$ 730 milhões à vista. Esse tipo de operação é comum no mercado de créditos judiciais, mas causou desconforto governamental.

A AGU interveio para assinar o acordo diretamente com a massa falida, evitando que o crédito fosse transferido à iniciativa privada. A União comprometeu-se a pagar R$ 4,7 bilhões à massa falida da Varig, quantia homologada pela Justiça Federal e suficiente para encerrar a disputa.

O pagamento foi realizado por meio de precatório em julho de 2025, com a cláusula de que parte dos recursos deve ser destinada à quitação de dívidas trabalhistas e previdenciárias, incluindo atrasados do FGTS para mais de 15 mil ex-funcionários. Um montante de R$ 575 milhões foi reservado para essa finalidade, encerrando passivos trabalhistas persistentes desde a falência.

Mais de R$ 1 bilhão foi direcionado para quitar dívidas extraconcursais, priorizadas sobre as demais, como despesas trabalhistas e obrigações assumidas após a decretação da falência. O restante, cerca de R$ 3 bilhões, é o valor envolvido na atual disputa judicial que deve seguir para instâncias superiores.

História da Varig

Fundada em 1927 em Porto Alegre pelo imigrante alemão Otto Ernst Meyer-Labastille, a Viação Aérea Rio-Grandense (Varig) iniciou suas operações com voos entre Porto Alegre e Rio Grande, numa época em que viajar de avião era privilégio restrito.

Nas décadas posteriores, a empresa expandiu suas rotas para o exterior, inaugurando, por exemplo, o trajeto entre Rio de Janeiro e Nova York em 1955. Nos anos 1970, consolidou-se como a maior companhia aérea da América Latina. Sob gestão da Fundação Ruben Berta, criada em 1945 para reunir empregados como sócios, a Varig desenvolveu um modelo organizacional inovador, no qual os funcionários controlavam a companhia e elegiam o conselho estratégico.

A empresa ainda promoveu a criação de subsidiárias regionais, como a Rio-Sul e a Nordeste Linhas Aéreas, focadas em rotas locais. O grupo operou uma frota superior a 120 aviões e empregou cerca de 20 mil trabalhadores, permanecendo por décadas como o principal nome da aviação brasileira.

Contudo, a abertura do mercado aeronáutico no início dos anos 1990, a intensificação da concorrência e as crises cambiais afetaram sua competitividade. A política tarifária imposta durante o Plano Cruzado, que congelou preços das passagens, agravou ainda mais os prejuízos financeiros, iniciando um ciclo de desequilíbrio que culminou na falência.

Fonte

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