O manual de espionagem dos EUA que orienta a sabotar o trabalho
“Converse frequentemente e prolongadamente”, “interprete mal as instruções e faça inúmeras perguntas” são algumas das recomendações do manual da CIA voltado para sabotadores durante o período da guerra.
Instruções como “reduza a moral e, consequentemente, a produção: seja condescendente com trabalhadores ineficientes, atribua-lhes promoções sem merecimento; discrimine os trabalhadores eficientes e critique seu desempenho injustamente”, “agende reuniões durante momentos de tarefas urgentes”, “aumente a burocracia de maneira plausível” e “dobre os processos para que múltiplas pessoas precisem aprovar decisões que uma só poderia tomar” fazem parte de um documento distribuído pelo serviço de inteligência dos Estados Unidos em janeiro de 1944.
Esse material, intitulado Simple Sabotage Field Manual (Manual de Sabotagem Simples de Campo), com 32 páginas, foi criado pelo Escritório de Serviços Estratégicos norte-americano, órgão que funcionou entre 1942 e 1945 e é reconhecido como precursor da CIA, formada em 1947.
O manual foi entregue a agentes dos EUA para serem repassados em países aliados, com o propósito de treinar cidadãos para realizar atos de sabotagem nos territórios ocupados pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. A ideia era que simpatizantes dos Aliados, infiltrados em empresas de nações do Eixo, atrapalhassem as operações inimigas no cenário bélico.
Contexto da guerra híbrida
William Donovan (1883-1959), chefe do departamento de inteligência dos EUA na época, assinou a introdução do documento.
Para a compreensão atual, o manual se encaixa nas táticas conhecidas como guerra híbrida, que combinam métodos militares e não militares, incorporando ataques psicológicos, interferências informacionais e campanhas de desinformação para criar confusão entre o que caracteriza guerra ou paz, segundo o cientista político Leonardo Bandarra, pesquisador na Universidade de Duisburg-Essen, na Alemanha.
O historiador Victor Missiato, do Instituto Mackenzie, destaca que, devido à dimensão global da Segunda Guerra, novas estratégias e técnicas, como espionagem e sabotagem, tornaram-se necessárias para enfrentar múltiplas frentes de confronto.
Hugo Tisaka, especialista em segurança e fundador da NSA Global, classifica essa tática como uma guerra psicológica, habitual em zonas de conflito, e ressalta que embora seja comum, não deveria ser uma prática padrão.
Além disso, tanto Tisaka quanto Bandarra observam as semelhanças entre este manual e o Manual do Guerrilheiro Urbano (1969), utilizado para instruir militantes de esquerda no Brasil.
O cientista político Paulo Niccoli Ramirez, da Fespsp, define o documento como um conjunto de “estratégias antiadministrativas”, que induzem os infiltrados a agir com um zelo excessivo, interrompendo o avanço produtivo e burocrático ao criar contradições por meio de minúcias que, supostamente, seriam para melhorias.
O cidadão comum como sabotador
Dividido em cinco partes, o manual detalha introdução, efeitos, motivações, ferramentas e táticas específicas para sabotagem simples, reforçando que o sabotador pode ser uma pessoa comum que realiza pequenos atos contra o inimigo.
Missiato comenta que as ações descritas refletem táticas adotadas tenha pelo lado adversário, destacando que os Aliados tentavam acompanhar e conter as medidas nazistas nos primeiros anos de guerra.
O documento enfatiza que os instrumentos do sabotador são itens cotidianos domésticos, como sal, pregos, velas e linha, acessíveis em seu ambiente habitual, e que a sabotagem pode se concretizar também por meio de decisões erradas ou atitudes pouco cooperativas, sem necessariamente causar dano físico direto.
Para mantê-lo motivado, o manual aconselha convencer o sabotador-de-bitola de que suas ações são defesa legítima ou retaliação contra o inimigo, reforçando o sentimento de pertencimento a um grupo invisível atuando contra o adversário.
A recomendação inclui ainda não temer assumir responsabilidade por atos, desde que raros e com justificativas plausíveis, e manter que os atos prejudiciais atinjam a mão de obra e os materiais do inimigo.
Aplicações no ambiente laboral
A parte final do manual apresenta sugestões específicas de sabotagem cotidiana, incluindo frases como “levante questões irrelevantes frequentemente”, “solicite revisões desnecessárias em comitês”, “conduza discursos longos e com muitas anedotas”, “refaça decisões já tomadas”, “exija comandos por escrito”, “interprete mal as ordens e questione interminavelmente”, “priorize tarefas menos importantes” e “forneça instruções incompletas a novatos”.
Também há instruções para iniciar incêndios em instalações após sua saída, usando dispositivos simples confeccionados com materiais comuns como vela e algodão, ou acumulando resíduos oleosos em lixeiras para facilitar o fogo.
O manual sugere construir álibis, como ser o primeiro a relatar o incêndio, mas nunca cedo demais, enfatizando que ambientes limpos evitam fogo, enquanto a sujeira aumenta o risco.
Outras táticas indicam colocar objetos nas fechaduras para bloquear acessos, deixar ferramentas cegas para prejudicar a produção e adulterar o óleo de máquinas para danificá-las.
Para veículos, recomenda-se diluir o combustível com líquidos como água ou urina para impedir seu funcionamento, além de furar pneus e redirecionar chamadas telefônicas para alterar comunicações empresariais.
Interferir em transmissões de rádio e desorganizar os serviços postais também faz parte das estratégias apresentadas, mostrando como a guerra podia adentrar o cotidiano das pessoas, longe do campo de batalha tradicional, comenta Missiato.
Estratégias de atrasos e burocracia
O documento enfatiza que todos os empregados podem participar ativamente.
Missiato ressalta a sofisticação das táticas que transformaram o ambiente social em um campo de batalha.
As orientações incluem trabalhar lentamente, aumentar a quantidade de movimentos necessários no trabalho, utilizar ferramentas inadequadas para retardar as tarefas, prolongar idas ao banheiro e esquecer ferramentas para precisar retornar.
Também indica fingir desconhecimento das instruções para requerer repetições, parecer ansioso e incomodar superiores com perguntas desnecessárias, agir de forma irritante mas sem causar problemas graves, responder com longas explicações confusas e provocar atritos com colegas.
Segundo Bandarra, o objetivo principal da sabotagem era ampliar o tempo para realização de tarefas, criando um efeito de lentidão estratégica que, na guerra, é fator decisivo.
Contraponto à gestão empresarial
O executivo Rafael Catolé, autor de O Poder da Gestão, reconhece que as diretrizes do manual são opostas às boas práticas atuais, que preconizam a simplicidade, democratização das decisões e foco em resultados objetivos.
Catolé comenta que muitas empresas acabam se autossabotando, por exemplo, com reuniões excessivamente longas e sem foco claro, que atrasam decisões simples.
Paulo Niccoli Ramirez destaca que, embora existam ferramentas administrativas vantajosas, o excesso de burocracia pode frear a criatividade, espontaneidade e autonomia produtiva, refletindo as práticas sabotadoras descritas no manual.



