Argentina permite desvalorização do peso, mas age para frear perdas
O governo do presidente Javier Milei adotou uma estratégia inesperada nesta semana ao deixar o peso enfraquecer, ao mesmo tempo em que implementou ações para evitar uma corrida por dólares que poderia intensificar a inflação no país.
Após gastar aproximadamente US$ 100 milhões diários na semana anterior tentando conter a queda da moeda antes das eleições na província de Buenos Aires, o Tesouro argentino diminuiu consideravelmente as vendas de dólares no mercado à vista. Isso permitiu que o dólar aumentasse seu valor frente ao peso até atingir o limite superior da banda cambial. O ministro da Economia, Luis Caputo, afirmou na quinta-feira à noite que a diminuição das operações pelo Tesouro ocorreu diante de indícios de estabilização no mercado.
Simultaneamente, o Banco Central da Argentina atuou para proteger o peso, vendendo contratos de dólar overnight com recompra programada, buscando assim retirar parte do capital usado pelos investidores para adquirir dólar americano e conter a valorização da moeda estrangeira. Informações do mercado futuro local indicam que o Banco também intensificou a venda de contratos futuros de dólar para segurar a taxa de câmbio.
Apesar dos efeitos positivos dessas medidas — como a queda das taxas de juros internas de patamares recordes e a recuperação dos títulos em moeda estrangeira após fortes perdas — o governo argentino enfrenta um espaço cada vez mais restrito para manobras econômicas.
Na segunda-feira, o dólar teve um aumento de 4% e permaneceu em alta ao longo da semana. O Tesouro argentino está com reservas limitadas de dólares e as operações do Banco Central com contratos futuros já estão próximas do limite legal permitido.
Gabriel Caamaño, sócio da consultoria Outlier, observou que o governo está ficando sem ferramentas para intervir no mercado. Estima-se que os contratos futuros do Banco Central totalizam cerca de US$ 6 bilhões, um dos níveis mais altos já alcançados e próximo ao teto regulatório de US$ 9 bilhões. Enquanto isso, os depósitos do Tesouro em moeda estrangeira caíram para menos de US$ 1,1 bilhão, restringindo ainda mais sua capacidade de atuação.
Com o ajuste na estratégia, o câmbio voltou a sofrer pressão na sexta-feira. Conforme reportagem do jornal La Nación, o dólar oficial fechou com alta de 1,7%, cotado a 1.446 pesos, perto do limite máximo da faixa de negociação, que é de 1.471,90 pesos. Na semana, a valorização acumulada da moeda americana foi de 6,1%.
Surpresa e mudanças na política cambial
A decisão do governo de permitir uma desvalorização moderada do peso causou surpresa no mercado, sobretudo depois que Milei garantiu que não haveria alterações na política econômica após a derrota nas eleições locais na província de Buenos Aires no último fim de semana.
O economista Pedro Martinez, da consultoria PxQ, comentou em relatório que o governo estaria adotando “táticas de distração”, afirmando que apesar de negar mudanças na política monetária e cambial, está promovendo alterações substanciais no sistema.
O ministro Caputo afirmou em uma transmissão ao vivo que as autoridades cessaram as intervenções no mercado de câmbio após a liquidez voltar à normalidade depois dos “ataques” pré-eleitorais, lembrando que investidores haviam reduzido suas posições antes da votação e correram para vender após a derrota do partido de Milei.
Ele acrescentou que, caso o dólar continue subindo por percepção de risco ou demanda de proteção, a decisão é do mercado, mas que a normalização da liquidez dispensa novas intervenções.
O ministro não comentou sobre o uso dos contratos de recompra usados pelo Banco Central nem sobre as vendas no mercado futuro. Tampouco houve respostas do Banco Central ou do Ministério da Economia a pedidos de informação da Bloomberg.
Limites da política e riscos eleitorais
A postura pragmática adotada pela Argentina contribuiu para conter a queda dos ativos nacionais. Os títulos soberanos com vencimento em 2035 conseguiram recuperar parte da desvalorização provocada pela derrota eleitoral, porém continuam com desempenho inferior comparado a outros mercados emergentes, em função das pressões no câmbio. Na quinta-feira, tais papéis recuaram novamente, eliminando os ganhos obtidos no início da semana.
O estrategista do banco Barclays, Ivan Stambulsky, explicou que os mercados estão atentos ao comportamento do regime cambial e à possibilidade de intervenções das autoridades em outubro. Embora os primeiros dias após a eleição tenham sido positivos, o câmbio aproximou-se do teto da faixa de negociação, não descartando-se novas ações agressivas para vender dólares nas próximas semanas.
O presidente do Banco Central argentino, Santiago Bausili, garantiu na mesma live de Caputo que a política cambial permanecerá inalterada e o regime de bandas cambiais continuará vigente.
Investidores temem que, nas eleições legislativas de meio de mandato em outubro, o partido de Milei sofra nova derrota, o que poderia enfraquecer suas propostas de reformas para a segunda maior economia da América do Sul. Para evitar isso, Milei precisaria estabilizar o peso, reduzir as taxas de juros e impulsionar o crescimento econômico, desafios relevantes numa conjuntura em que a confiança da população na moeda local diminui.
Segundo Paula Gandara, diretora de investimentos da Adcap Asset Management em Buenos Aires, a volatilidade deve se manter elevada até as eleições de outubro.
Após o revés eleitoral na província de Buenos Aires, Milei prometeu corrigir falhas políticas, gerando especulações sobre uma reforma ministerial. Entretanto, ainda não anunciou mudanças significativas na equipe de governo, tampouco avançou em aproximações com governadores que poderiam fortalecer sua base. Novas derrotas no Congresso também poderiam impactar negativamente os títulos argentinos.
O banco Morgan Stanley já retirou seu otimismo sobre a Argentina após o resultado das urnas, enquanto o JPMorgan Chase recomendou aos clientes a adoção de proteções cambiais, mantendo exposição a títulos locais, ante previsões de um cenário mais difícil no futuro próximo.
Defesa do peso e operações do Banco Central
Antes mesmo das eleições em Buenos Aires, os ativos argentinos enfrentavam pressão, com investidores reduzindo sua exposição diante de denúncias de corrupção envolvendo familiares de Milei, contratempos no Congresso e diminuição do risco próximo à votação.
Para reforçar a defesa do peso, o Banco Central acelerou o uso de operações overnight com compromisso de recompra, recurso reintroduzido apenas dois meses após a finalização dos contratos de recompra de sete dias, conhecidos como LEFIs. No final de agosto, surgiu um novo título de um dia, classificado como “Outros” no balanço do BC.
Na terça-feira, o BC vendeu 1,1 trilhão de pesos desses contratos, elevando o total para 4,5 trilhões de pesos. A taxa de juros dessas operações caiu para cerca de 35%, ante os 45% registrados no começo da semana, em função da desvalorização mais gradual do peso, que diminuiu os receios de uma queda abrupta e reduziu a pressão sobre as taxas locais.
Caamaño destaca que o verdadeiro desafio ocorrerá na virada do mês, quando a pressão eleitoral tende a se intensificar novamente, e as pessoas, atualmente com grande volume em dólares, voltarão a movimentar suas reservas em pesos. A convicção sobre o novo modelo pragmático será testada nesse período.
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