JBS, MBRF e Danone se preparam para o impacto do ‘efeito Ozempic’ e destacam proteínas nas refeições
Grandes empresas do setor alimentício estão desenvolvendo produtos direcionados a consumidores que estão reduzindo a quantidade de alimentos ingeridos, mas valorizando a qualidade nutricional. Essa tendência deve se intensificar com a popularização dos medicamentos conhecidos como “canetinhas”, que influenciam o apetite.
No Brasil, a carne, antes apenas um acompanhamento do arroz e feijão, assumiu papel principal nas refeições, refletindo uma mudança também na indústria de alimentos. Produtos que priorizam o conteúdo proteico, como iogurtes focados na recuperação muscular e marmitas congeladas com até 30 gramas de proteína, são exemplos claros dessa transformação.
Essa mudança é parcialmente influenciada pelo crescente uso de medicamentos análogos de GLP-1, como semaglutida (comercializada como Ozempic e Wegovy) e tirzepatida (Mounjaro). Essas drogas agem no organismo simulando um hormônio intestinal que desacelera o esvaziamento gástrico e aumenta a sensação de saciedade, o que leva a uma redução significativa no apetite e na quantidade de alimentos consumidos.
Entretanto, sem acompanhamento médico e nutricional, essa rápida perda de peso pode resultar também em diminuição da massa muscular. Por isso, é recomendada a ingestão maior de proteínas para manter a massa magra durante o processo de emagrecimento.
Além dos usuários desses medicamentos, há um público mais amplo que vem reduzindo o consumo de carboidratos há anos. Entretanto, a atual demanda por proteínas tem se tornado mais forte, como afirmou Wesley Batista, um dos controladores da JBS, a maior produtora mundial de carnes. Ele destacou que nos Estados Unidos não há produção suficiente de carne para acompanhar o aumento da demanda ocasionado por essa nova forma de alimentação.
“Ninguém sabe exatamente o impacto que Ozempic ou Mounjaro terão, mas algo está claro: a proteína virou uma tendência”, declarou Batista em entrevista ao Financial Times.
Tendência global e mercado brasileiro
O discurso de Wesley Batista reflete uma tendência que tem impacto global e também ganha força no Brasil. O uso em larga escala dos medicamentos contra obesidade ainda está em estágio inicial no país, mas o mercado já movimenta cerca de R$ 5 bilhões por ano e deve crescer ainda mais com a aproximação do fim da patente da semaglutida, prevista para o final do primeiro trimestre do próximo ano.
Estima-se que até 6% da população brasileira poderá estar fazendo uso de análogos de GLP-1 nos próximos anos, percentual que poderá aumentar caso o medicamento seja incorporado pelo sistema público de saúde (SUS), segundo dados do Global Burden of Disease 2024 e da Associação Médica Brasileira.
Enquanto isso, a indústria alimentícia já se prepara para essa mudança, aproveitando que o Brasil está entre os maiores consumidores mundiais de carne bovina e também figura no top 10 do consumo de carne de frango, conforme informações do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA).
Apostas das indústrias brasileiras
A Seara, marca da JBS, é um exemplo dessa adaptação. Em agosto, a empresa lançou a linha “Protein”, composta por refeições congeladas que contêm até 30 gramas de proteína por porção. Essa linha foi criada para atender consumidores que buscam maior qualidade nutricional, incluindo usuários dos análogos de GLP-1.
Antes do lançamento, o produto passou por testes com 200 consumidores. Embora tenha preço sugerido de R$ 29,90, um pouco acima das versões tradicionais que custam R$ 19,90, a proposta nutricional é diferenciada.
Segundo Rafael Palmer, diretor de marketing de alimentos preparados da Seara, “o brasileiro aprendeu a analisar os rótulos. Atualmente, a proteína é um atributo valorizado e essa categoria vai além do público fitness”. O lançamento inicial ocorreu em São Paulo, com previsão de expansão para todo o país no início de 2026.
Palmer destaca que o consumidor que ingere menos alimentos tende a ser mais seletivo, exigindo produtos funcionais. O desenvolvimento dessa linha começou há mais de um ano, acompanhando a mudança do consumo orientado por volume para o consumo de valor.
A MBRF, responsável por marcas como Sadia e Perdigão, também investiu em produtos com maior aporte proteico. Sua linha “Meu Menu” oferece refeições completas com até 24 gramas de proteína por porção. Luiz Franco, diretor executivo de marketing e inovação da MBRF, reforça que “o consumidor procura por refeições menores, mais equilibradas e com alto valor proteico”.
Pesquisa da MBRF revela que 19,7% dos brasileiros priorizam uma alimentação saudável, 19,6% valorizam a economia de tempo e 11,9% preferem soluções prontas. Além disso, um a cada três brasileiros consome refeições congeladas pelo menos uma vez por semana, justificando o foco das grandes empresas nesse segmento.
Para a Danone, o movimento é abrangente, partindo do reconhecimento de que 61% dos adultos brasileiros estão com excesso de peso ou obesidade, um contingente próximo de 100 milhões de pessoas, conforme o IBGE.
Marcelo Bronze, vice-presidente de marketing da Danone no Brasil, ressalta que essas pessoas eventualmente buscarão mudar seus hábitos alimentares e a empresa pretende estar preparada para essa demanda. Ele considera que os medicamentos à base de GLP-1 estão inseridos em um processo maior de gestão de peso e saúde, não apenas como uma moda passageira.
Ele comenta que a categoria de proteínas está crescendo de forma significativa, envolvendo produtos como macarrão proteico, águas, sucos e snacks ricos em proteínas. O GLP-1 é um fator que acelera essa tendência, mas a reavaliação do que o brasileiro come é mais ampla.
O portfólio da Danone está sendo remodelado para atender consumidores que buscam alimentação saudável, independentemente do uso dos medicamentos. Produtos multifuncionais que combinam proteína, fibras, probióticos e baixo teor de açúcar, como as linhas Yopro, Activia 000 e o recém-lançado Danone 5 Zeros, são exemplos desse reposicionamento.
Apesar da empolgação do setor, no Brasil o uso desses medicamentos ainda está restrito a uma parcela de maior poder aquisitivo, ao menos até a patente da semaglutida expirar.
A experiência dos Estados Unidos
Nos Estados Unidos, país pioneiro na adoção em massa de Ozempic e Mounjaro, cerca de 12% dos adultos já utilizaram algum medicamento à base de GLP-1. Segundo a consultoria PwC, as famílias com usuários dessas “canetas” reduziram os gastos com alimentos entre 6% e 11% nos primeiros meses de uso.
Além de gastar menos, mudou o perfil das compras: a compra de snacks, refrigerantes e produtos ultraprocessados diminuiu, enquanto aumentaram os itens com proteínas, fibras e baixo teor de açúcar. Atualmente, 71% dos consumidores americanos buscam aumentar o consumo de proteína, contra 59% há dois anos, segundo o International Food Information Council.
Exemplificando essa mudança, a Nestlé lançou nos EUA a linha Vital Pursuit, direcionada explicitamente a pessoas que usam medicamentos à base de GLP-1, com refeições congeladas pequenas e ricas em proteínas e fibras.
Já a marca de iogurtes gregos da Danone, Oikos, viu suas vendas crescerem cerca de 40% no último ano, resultado atribuído parcialmente aos consumidores que buscam produtos com alto teor proteico e baixa caloria para acompanhar o uso dos medicamentos.
Entendendo os efeitos do GLP-1 no organismo
Essa crescente preferência por proteína vai além de uma moda: está relacionada a como o corpo responde a esses medicamentos. Os análogos de GLP-1 modificam a sensação de fome, desacelerando o esvaziamento estomacal e fazendo com que o cérebro registre que a saciedade foi alcançada com menos alimento.
O cardiologista Pedro Farsky, especialista em metabolismo e obesidade, explica que “é como se o corpo esquecesse de sinalizar a necessidade de comer com a mesma frequência”. Os medicamentos podem reduzir o apetite em até 47% e, nas primeiras 20 semanas, gerar uma perda média de 17% do peso corporal.
Embora sejam ferramentas eficazes, Farsky alerta que é fundamental acompanhamento profissional para garantir que a diminuição no consumo seja compensada com alimentos nutritivos, especialmente proteínas, para evitar perda muscular.
A nutricionista Lara Natacci, pós-doutora pela USP, reforça que a saciedade prolongada exigida pelos remédios faz com que o paciente consuma menor quantidade, mas com qualidade nutricional superior. Ela recomenda a ingestão entre 1,2 e 1,6 grama de proteína por quilo corporal, distribuída em pequenas porções ao longo do dia.
Lara adverte que a falta dessa reposição proteica pode levar à perda rápida de peso, porém acompanhada de redução da força, disposição e imunidade, já que preservar a massa magra deve ser prioridade. Por outro lado, ela também aconselha evitar o excesso de proteínas, que pode ser convertida em gordura e, em casos extremos, sobrecarregar os rins.
Segundo a nutricionista Bianca Naves, autora do livro “A Dieta das Canetas”, a transformação promovida por esses medicamentos não é apenas física, mas envolve mudança de comportamento alimentar. “Eles reduzem o prazer imediato da comida, levando a pessoa a comer mais por necessidade do que por desejo”, comenta.
Ela observa que muitos pacientes substituem refeições completas por frutas, cafés ou lanches leves, o que, sem orientação adequada, pode elevar o risco de deficiências nutricionais.
Por isso, Bianca destaca que a busca por alimentos proteicos tornou-se um instinto alimentar recente e essencial: quem utiliza esses remédios passa a fazer menos refeições, mas procura itens com maior densidade nutricional e valor biológico. “É uma reeducação alimentar acelerada pela química”, conclui.



