Regulação Fraca e Riscos Financeiros Na Indústria De Barriga De Aluguel Nos EUA

Regulação Fraca e Riscos Financeiros Na Indústria De Barriga De Aluguel Nos EUA

Indústria de barrigas de aluguel nos EUA movimenta grandes valores financeiros com pouca fiscalização

O setor americano de barriga de aluguel enfrenta inúmeros casos de abusos financeiros e funciona com mínima regulamentação.

Em Austin, Texas, AnnaMaria Gallozzi e seu marido tentavam ampliar a família no ano anterior. Com um diagnóstico de câncer de mama avançado, recorreram a uma barriga de aluguel para gerar seu segundo filho.

Para custear o procedimento, o casal recorreu a uma vaquinha online e a uma segunda hipoteca da casa, reunindo cerca de US$ 100 mil, dos quais US$ 55 mil foram depositados em uma conta caução que julgavam segura. O plano era transferir um embrião para a mulher que carregaria a gravidez.

Porém, dois meses depois, antes do sucesso do processo, o montante desapareceu misteriosamente.

“Foi um susto enorme,” lembrou Gallozzi ao descobrir que a conta estava vazia, o que parecia destruir suas chances de formar a família desejada.

Como milhares de outros casais americanos que passaram por esse delicado e pouco regulamentado processo, eles confiaram os recursos a uma empresa especializada no gerenciamento do dinheiro destinado à barriga de aluguel.

Gallozzi e o marido contrataram a Surrogacy Escrow Account Management (SEAM), uma das poucas empresas dedicadas a administrar financeiramente a complexidade das despesas envolvidas, como custos médicos e taxas associadas.

No entanto, conforme denúncia em ação civil movida por diversos pais, a proprietária da SEAM, Dominique Side, desviou até US$ 16 milhões desses fundos para financiar um estúdio de gravação, uma carreira musical no rap e uma marca de roupas veganas de luxo.

Esse escândalo deixou centenas de famílias americanas, bem como as barrigas de aluguel, enfrentando uma situação financeira delicada em um dos momentos mais sensíveis de suas vidas.

O caso da SEAM não é isolado: várias empresas que atuam com custódia financeira nesse setor lidam com milhões de dólares dos clientes sem supervisão eficaz, revelou uma análise do The Wall Street Journal, com base em registros judiciais e entrevistas.

Em 2025, um outro caso marcou a indústria quando a dona de uma agência de barriga de aluguel confessou fraude eletrônica pelo uso indevido de dinheiro para custear um negócio pessoal de ioga e uma câmara de flutuação, além de despesas particulares.

Em outros episódios reportados, um funcionário desviou US$ 2,7 milhões dos clientes para sustentar um vício em jogos de azar online, e outro aplicou recursos dos pais em investimentos em bitcoin.

Ausência de regulamentação gera vulnerabilidade a fraudes no mercado de barriga de aluguel

A inexistência de legislação federal rígida expõe tanto os pais quanto as mulheres que atuam como barriga de aluguel a riscos financeiros e legais.

Barrigas de aluguel que já estão grávidas muitas vezes precisam seguir adiante com a gestação mesmo sabendo que podem não ser remuneradas, além de se depararem com despesas médicas às quais não podem arcar. Paralelamente, os pais se deparam com processos judiciais complexos relacionados ao não pagamento.

Segundo Andrew Bluebond, advogado texano que auxiliou Gallozzi, lidar com dinheiro de terceiros é atividade regulada em diversas áreas, mas nesse nicho a falta de fiscalização permitiu que a confiança fosse traída.

O Departamento de Justiça investiga a SEAM, enquanto o FBI lançou questionário online à procura de vítimas da empresa. Clientes da SEAM instauraram duas ações civis contra Side e a empresa.

Expansão e falta de regulamentação na indústria de barrigas de aluguel

O segmento de barriga de aluguel disparou nos Estados Unidos, tornando-se um negócio multibilionário impulsionado por fatores como o aumento da infertilidade, avanço na cobertura de seguros, maior número de famílias LGBTQIA+ e a chegada de casais estrangeiros de países que proibem a técnica, como a China.

Em 2023, cerca de 10.850 transferências de embriões para barrigas de aluguel foram realizadas em clínicas associadas à Sociedade de Tecnologia de Reprodução Assistida (SRO), que representa 95% dos procedimentos nos EUA, um aumento significativo em relação a 8.461 casos registrados em 2021. A expectativa é de crescimento anual de 15%, sendo que metade das transferências culmina em parto bem-sucedido.

Apesar desse avanço, o país não possui regulações federais que tratem dos aspectos financeiros ou outros relacionados à gestação por substituição, ficando o tema sujeito a diversas normas estaduais.

Por exemplo, na Louisiana, a remuneração a barrigas de aluguel é proibida, enquanto em outros estados contratos comuns no setor são considerados legalmente inexequíveis.

Custo elevado e funcionamento das contas de custódia na barriga de aluguel

O valor para realizar uma gestação por substituição, somando agências, remuneração da barriga de aluguel, procedimentos médicos e demais custos, frequentemente ultrapassa US$ 150 mil, de acordo com Eran Amir, fundador da plataforma GoStork. Em casos mais sofisticados, pode chegar a US$ 500 mil, incluindo serviços de concierge e assistência executiva.

As mulheres que atuam como barrigas de aluguel podem receber acima de US$ 100 mil, embora a maioria das primeiras gestações pague cerca de US$ 50 mil, além de cobertura para despesas médicas, roupas, seguro e compensação por perda de salário.

Após firmar os contratos, os pais costumam depositar recursos para custear transferências de embrião, gravidez, nascimento e outras despesas em contas de custódia, que controlam e distribuem os valores conforme as necessidades surgem.

Empresas que operam essas contas podem gerenciar simultaneamente milhões de dólares. Algumas agências mantêm contas próprias, enquanto outras indicam prestadores terceirizados, como a SEAM.

Entretanto, várias famílias que conversaram com o The Wall Street Journal acreditavam que esses serviços funcionavam com segurança semelhante à de bancos, mas lamentaram a ausência de garantias reais, já que a SEAM divulgava auditorias mensais e ofertas de contas especializadas em seu site.

O processo apresenta complexidades, pois os pagamentos precisam ocorrer durante os nove meses ou mais de gravidez para clínicas, barrigas de aluguel, hospitais e seguradoras, sempre em conformidade com o contrato.

Porém, em diversos casos, as empresas de custódia misturaram recursos dos clientes com fundos do negócio, prática contrariada pelos procedimentos tradicionais de gestão financeira.

Roman Belyayev, corretor imobiliário, ficou surpreso ao constatar que uma dessas empresas, SEAM, misturava os fundos dos clientes com contas comerciais, algo que ele classificou como erro básico.

A Ethics in Egg Donation and Surrogacy, grupo do setor que propõe diretrizes, lançou recomendações para as contas de custódia, incluindo exigência de credenciais, auditorias por contadores certificados e cobertura mínima de US$ 10 milhões, mas essas orientações não são obrigatórias.

Casos recentes de desvio e fraudes no setor

Nos últimos meses, diversos episódios evidenciaram os riscos presentes no mercado de barriga de aluguel.

Em maio, Lillian Markowitz, dona de uma agência, foi condenada a dois anos de prisão após admitir fraude, envolvendo mais de US$ 150 mil desviados entre 2019 e 2021 para gastos pessoais e um negócio de estúdio de ioga.

Em agosto, Darryl Kauffman foi sentenciado a três anos de detenção por fraude eletrônica envolvendo dinheiro da custódia, usado para comprar bitcoin e pagar despesas pessoais.

No mesmo mês, Destiny Combs recebeu pena superior a quatro anos de prisão por desviar US$ 2,7 milhões da agência IARC Surrogacy e escritório jurídico relacionado, usando os recursos para cobrir dívidas com jogos de azar online. O proprietário da IARC afirmou que as vítimas foram ressarcidas parcialmente.

Em Los Angeles, um casal processou o International Reproductive Law Group por perda de aproximadamente US$ 61 mil em fundos de custódia. O dono da empresa foi acusado de desviar recursos para fins pessoais, embora tenha negado as acusações.

Perfil controverso da principal envolvida no caso SEAM

Dominique Side, chamada no site da SEAM de “a chefona”, seria ex-barriga de aluguel e comprou a empresa em 2015.

Ela também mantinha redes sociais onde se apresentava como uma “empreendedora serial”, envolvida em um estúdio de produção musical e de vídeo, uma mídia vegana de luxo e como rapper com conteúdo adulto.

A SEAM cresceu e se tornou uma das maiores empresas do ramo nos EUA, atendendo a mais de mil clientes com seis funcionários.

Side chegou a participar em 2024 de debate sobre desafios na gestão de custódia, mas documentos e conversas indicam grave crise financeira pessoal.

Tribunal do condado de Harris constatou que a empresa devia impostos. Em 2024, foi revelado que Side tomara empréstimos com juros próximos a 200%, chegando a dever quase US$ 70 mil a um credor, que se confundiu sobre quem devia o dinheiro.

Mensagens divulgadas mostraram que Side admitia estar numa crise, precisando de US$ 15 milhões para sanar os problemas da SEAM.

A partir de maio, a empresa passou a atrasar repasses a barrigas de aluguel e médicos. Credores iniciaram ações judiciais exigindo o pagamento de quase US$ 1,2 milhão em dívidas.

Clientes receberam e-mails explicando que a conta bancária da empresa havia sido congelada por suspeitas de cobranças fraudulentas, o que fez famílias criarem grupos para troca de informações, administrados por pessoas como AnaMaria Gallozzi.

Side comunicou que estava sob investigação federal e se absteve de responder perguntas.

Impacto emocional e financeiro sobre as famílias atingidas

Em Colorado, Kelly O’Dell sofreu forte ataque de pânico ao receber a notícia da investigação. Sua barriga de aluguel estava grávida de 22 semanas, e o casal havia deixado US$ 47 mil na SEAM para custear os pagamentos.

Gallozzi organizou uma planilha para que os membros do grupo relatassem os valores investidos, chegando a quase US$ 16 milhões perdidos.

Na Pensilvânia, a barriga de aluguel grávida de um casal francês preocupava-se com a segurança financeira, temendo que não seria remunerada caso os pais desistissem.

Advogados próximos às famílias comprometeram-se a rever contratos e prestar auxílio jurídico pro bono, mas destacaram que as perdas financeiras causam sofrimento intenso.

Manifestações públicas de luxo enquanto famílias sofrem com prejuízos

Pais frustrados pelo roubo de dinheiro passaram a investigar a vida pública de Dominique Side nas redes sociais, onde ela exibia luxo e festas elaboradas, incluindo viagens internacionais e celebrações em iates no Caribe.

Vídeos mostravam Side em situações extravagantes, difusas do cenário difícil das famílias.

Em 2024, dezenas de famílias abriram processo contra a SEAM no Texas, alegando quebra de contrato e fraude, pleiteando a restituição dos mais de US$ 1,7 milhão depositados.

As investigações indicam que Side transferiu US$ 4,9 milhões para um estúdio musical que ela cofincou e mais de US$ 1 milhão em imóveis. Outros US$ 275 mil teriam sido investidos em sua marca de moda vegana, que comercializa artigos de luxo.

Side não compareceu ao tribunal, e um juiz determinou que ela deve indenizar algumas famílias em mais de US$ 1 milhão. A apuração criminal segue sem que ela tenha sido formalmente acusada.

Para muitas famílias, causa indignação ver Side continuar sua vida pública normalmente, como ministrando aulas para crianças em acampamento de verão.

Dificuldades financeiras levam famílias a tomar medidas extremas para prosseguir com a gestação

Kelly O’Dell e o marido tiveram que vender investimentos destinadas à aposentadoria para manter os pagamentos à barriga de aluguel, Maranda Jensen, que deu à luz em outubro de 2024.

Assim como Amy e Tyler Holdener, que tentaram transpor uma primeira experiência frustrada e custearam US$ 32 mil na SEAM com esperança de segunda tentativa, mas perderam os recursos.

Muitos recorreram a segundas hipotecas e empréstimos sobre aposentadorias para financiar a barriga de aluguel, mas alguns desistiram diante dos riscos.

Gallozzi, abalada pelo colapso da SEAM, viu a barriga de aluguel inicial desistir, mas encontrou apoio numa outra mulher grávida que concordou em ser sua nova barriga de aluguel.

O casal iniciou campanha para recuperar cerca de US$ 49 mil perdidos com a SEAM, conseguindo apenas parte do montante e assumindo empréstimos para honrar os custos.

Uma transferência mais recente resultou em aborto espontâneo após custo de US$ 13 mil, e o casal ainda tem um embrião para tentar, mas hesita devido ao estresse financeiro e emocional.

“O impacto foi enorme. A pergunta que fica é se realmente vale a pena passar por isso”, destacou Gallozzi.

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