Como o score transformou o crédito no Brasil, onde metade da população está negativada
Com quase 78 milhões de CPFs negativados, quase metade da população adulta do Brasil enfrenta restrições de crédito, segundo a Serasa Experian — o maior índice desde o início das séries históricas. Além disso, o IBGE aponta que 38% dos trabalhadores atuam na informalidade. Essa realidade impõe um grande desafio às instituições financeiras que buscam oferecer crédito de forma segura e inclusiva no país.
Diante desse cenário, os sistemas de score para análise de crédito vêm passando por uma rápida evolução. Atualmente, esses modelos são altamente personalizados, considerando desde o histórico financeiro até informações inesperadas, como dados de geolocalização e comportamentos digitais, tornando a avaliação muito mais abrangente.
O avanço tecnológico, especialmente com o uso de inteligência artificial e aprendizado de máquina, permite que esses algoritmos processem enormes volumes de dados em tempo real, operando 24 horas por dia, sete dias por semana para dezenas de milhões de pessoas.
Breve trajetória da avaliação de crédito no Brasil
Há pouco mais de dez anos, a análise de crédito se baseava principalmente na verificação de nome negativado ou não. Porém, a revolução dos scores mudou radicalmente essa dinâmica, ampliando o acesso ao crédito para diversos consumidores.
No Brasil, a transformação do sistema de score está fortemente relacionada ao surgimento das fintechs e bancos digitais, que começaram a ganhar espaço em 2012. Um momento decisivo ocorreu em 2018, quando o Banco Central implementou regulamentações específicas para as startups de crédito, impulsionando sua consolidação.
Essas fintechs promoveram uma verdadeira mudança, ao focar nos desbancarizados — pessoas sem histórico financeiro formal — buscando formas inteligentes de incluí-los no mercado de crédito. Conforme dados do Banco Central, em 2015, 57% dos adultos brasileiros não possuíam conta bancária. Esse índice diminuiu para 18% em 2020 e atualmente está em cerca de 13,5%, graças ao avanço dessas plataformas digitais.
Para viabilizar isso, as fintechs passaram a utilizar dados não tradicionais e criar modelos gestuais mais sofisticados para a análise de risco, o que possibilitou ampliar o crédito de forma mais eficiente e inclusiva.
Complexidade dos modelos e a chamada “caixa preta” dos scores
Com o tempo, os sistemas de score foram englobando um volume cada vez maior de dados, o que dificulta a transparência dos cálculos por trás das pontuações — por isso, alguns especialistas caracterizam esses modelos como “caixas pretas”.
Um profissional de uma instituição financeira, que preferiu manter anonimato, destaca que o uso de inteligência artificial faz com que os modelos evoluam quase automaticamente, o que complica a compreensão das variações nas pontuações.
Mesmo com essa crescente complexidade, o fator primordial que altera o score ainda é o histórico de pagamentos do consumidor. As novas informações atuam mais como um mecanismo para ampliar acesso ao crédito do que para bloquear financiamentos. Por exemplo, já é possível conceder crédito até mesmo para pessoas negativadas, ampliando o conceito tradicional de “bom” e “mau” pagador.
A surpreendente diversidade de dados utilizados
Existe uma grande variedade de scores, pois cada instituição financeira, fintech ou birô de crédito desenvolve suas próprias metodologias para análise, usando perfis e dados diferentes. Entre os birôs mais conhecidos estão Serasa Experian, Boa Vista e SPC, que coletam informações junto a diversas empresas conveniadas, incluindo concessionárias de serviços.
Essas informações são refinadas e avaliadas para entender, por exemplo, se uma eventual inadimplência foi um episódio isolado. Depois, os dados são repassados a outras empresas que utilizam essas informações para decisões de crédito. As pontuações produzidas ficam disponíveis para consulta tanto por pessoas físicas quanto por empresas.
Além disso, os bancos combinam os dados dos birôs com suas próprias bases para calibrar ainda mais suas análises.
Thiago Alvarez, fundador do Guia Bolso e ex-conselheiro do Open Finance no Brasil, relata que em países como os Estados Unidos já existem financeiras que analisam até a temperatura do celular para atribuir uma pontuação.
Essa metodologia baseia-se na premissa de que aparelhos com malwares tendem a esquentar devido ao uso de programas nocivos, o que pode indicar que o usuário esteja exposto a riscos, como acessar sites fraudulentos. Esse comportamento pode comprometer a capacidade financeira da pessoa, sendo um dado relevante para a avaliação de crédito.
Informações sobre consumo, informalidade e localizações
Wesley Brandão, especialista em score da Serasa Experian, explica que o uso de dados de geolocalização dos dispositivos móveis já é comum, desde que o cliente autorize. Isso permite avaliar padrões como frequência de viagens e visitas a lojas específicas, auxiliando a determinar a capacidade de pagamento de clientes negativados ou sem renda formal fixa.
Vale destacar que os modelos de análise variam bastante entre países, por conta da legislação vigente. Por exemplo, nos Estados Unidos, o uso de gênero para discriminar condições de crédito é proibido. Já no Brasil, essa restrição não existe formalmente, e as decisões seguem critérios estatísticos, como acontece no setor de seguros, onde mulheres geralmente pagam menos em apólices de automóveis.
A difusão da cultura do score no Brasil
A popularização do score no Brasil é relativamente recente. Um marco importante foi a decisão do Superior Tribunal de Justiça, em 2017, que permitiu o acesso do consumidor à sua nota de crédito, tornando possível que as pessoas acompanhassem sua pontuação para orientar suas escolhas financeiras.
Além disso, a decisão enfatizou a importância da transparência, estabelecendo que os consumidores têm direito a consultar seu score gratuitamente e receber explicações sobre mudanças na pontuação. Essa abertura mudou o cenário totalmente e inseriu o score no cotidiano da população.
A consciência sobre os motivos de variações na pontuação permite que os consumidores identifiquem comportamentos de risco, como gastos acima da capacidade, fomentando uma gestão financeira mais equilibrada.
Do lado das instituições financeiras, essa transparência contribui para a redução da inadimplência e oferece mais segurança na oferta de crédito.
De forma geral, o score funciona em uma escala que pode variar de zero a mil pontos, dependendo da metodologia adotada. Países com tradição no uso desse sistema até incorporam o score em aplicativos de relacionamento, onde a pontuação serve como indicador da responsabilidade financeira e ajuda a filtrar potenciais parceiros.
Apesar das evoluções, o elemento central continua sendo o comportamento de pagamento. Atrasos em contas diminuem rapidamente o pontuação, enquanto a recuperação para níveis anteriores exige um período mais longo, durante o qual o consumidor precisa demonstrar consistência e disciplina no pagamento de suas obrigações.
Como ressalta Brandão, esse é um processo gradual, pois é necessário verificar que o comportamento positivo é mantido de forma consistente ao longo do tempo, reforçando a ideia de que reputações financeiras são construídas lentamente e podem ser perdidas rapidamente.



